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O arquétipo meta-histórico do Império, a nostalgia do impossível e a vocação para a universalidade

Conferência realizada no dia 20 de fevereiro de 2021 no âmbito das V Jornadas de História, Filosofia Hermética e Património Simbólico subordinadas ao tema do V Império. Org: Linha de Investigação em Gnose e Esoterismo Ocidental da Área de Ciência das Religiões da Universidade Lusófona.


Introdução


Pretende-se com esta comunicação abordar o mito do Quinto Império essencialmente na sua dimensão simbólica, sabendo de antemão que estamos a tratar de um tema que se reveste de alto grau de subjetividade e que admite as mais diversas interpretações e apropriações confessionais e ideológicas. Nessa medida, procurar-se-á desconstruir o problema a partir da sua estrutura mítico-arquetípica, também com o intuito de lhe valorar o carácter universal e de lhe definir elementos mitémicos comuns a outros mitos e tradições.


Não é intuito desta apresentação esmiuçar os fundamentos e os desenvolvimentos históricos do mito do Quinto Império, já que isso ficará a cargo de alguns dos outros intervenientes destas Jornadas. Convém, no entanto, reter o carácter profético da fonte bíblica do mito, isto é, o livro de Daniel, já que esse facto lhe confere uma ordem escatológica essencial para a mitanálise do seu simbolismo.


É consabido que a ordem escatológica do profetismo bíblico força uma intromissão providencial na ordem progressiva da história. Essa suposta teofania histórica tende a remeter a realização messiânica do Quinto Império para o termo de um segmento secular composto de eventos sequenciais e irrepetíveis. Todavia, o mito imperial em si admite outros enquadramentos. O Quinto Império pode ser visto como o retorno a um estado edénico perdido, projetando no futuro a restituição de um passado áureo, o que nos remete para uma lógica de tempo cíclico que contrasta, pelo menos aparentemente, com a lógica de tempo progressivo do profetismo bíblico. Todavia, ambas as lógicas se harmonizam no plano puramente ontológico do mito, coexistindo na dimensão intemporal das perceções internas e da imaginação criadora. Naturalmente, os mitos que povoam o imaginário coletivo tendem a escapar aos referenciais do tempo histórico. Eles aparentam ser propriedade de um tempo existencial para o qual convergem, numa ótica puramente vertical, passado, presente e futuro. Será essencialmente nessa perspetiva que o mito imperial será aqui tratado.


A utopia do Império, como arquétipo de um espaço imaginal e de um tempo meta-histórico, parece mover um profundo sentimento de nostalgia que, por se projetar simultaneamente no mito edénico das origens e no seu retorno, ou expectação de um porvir áureo, vem alimentando o conceito paradoxal de ‘saudade do futuro’, ou, como diria Gilbert Durand, “nostalgia do impossível”, sobre a qual discorreremos ao longo de breves linhas.


Finalmente, será aqui tratado, ainda que de uma forma muito breve, o paradoxo providencialista português, no qual podemos surpreender o contraste entre a predestinação explícita de uma suposta função messiânica de Portugal, o que lhe confere um protagonismo axial entre as nações, e o vigor universalista e universalizante dessa função que, em dados momentos do pensamento profético português, transcende o princípio de identidade nacional e sintomatiza uma vocação inata para a universalidade.

Embora os tópicos que epigrafam esta comunicação sejam correlativos, afigura-se necessário abordar cada um deles convenientemente.


O arquétipo meta-histórico do Império


Esta noção decorre da possibilidade de enquadrar o Império arquetípico no contexto mitologémico da Idade do Ouro. Essa Idade mítica assinala o tempo meta-histórico do Império, o qual, à semelhança do reino do Graal, se teria perdido com a queda adâmica, movendo uma demanda subliminar e uma expectativa de restauração no termo escatológico da história. Semelhante perspetiva permite-nos evitar reduzir o arquétipo imperial ao contexto messiânico da tradição judaico-cristã, atribuindo-lhe uma maior abrangência de significados. É inegável que a ideia de Quinto Império radica na profecia de Daniel, mas os ingredientes implícitos na estrutura do seu mito possibilitaram, e continuam a possibilitar, constructos sucessivos, sendo isso que faz dele um mito dinâmico.


De acordo com Lima de Freitas,

“O mito do Quinto Império mergulha as suas raízes profundas num mito imemorial, que diríamos arquetípico pela sua universalidade, segundo o qual houve outrora, em tempos antiquíssimos, uma era de abundância, de paz e de felicidade, uma Idade de Ouro que há-de voltar um dia, no fim dos tempos e dos seus ciclos involutivos.” (Freitas, 2006, p. 96)


A introdução sincrónica do Império no tempo meta-histórico da Idade do Ouro confere-lhe, efetivamente, uma categoria arquetípica universal. Quer a Idade do Ouro da cosmovisão cíclica das eras, quer o tempo edénico original da antropogénese judaico-cristã, constituem, em linguagem junguiana, arquétipos fundamentais do inconsciente coletivo. Trata-se, no dizer de Eliade (cf. 2016, p. 67), de um Tempo sagrado, o Tempo do início, que não foi antecedido por qualquer tempo dito histórico, logo, um tempo mítico, primordial, que o imaginário religioso das tradições abraâmicas tende a situar a priori da queda adâmica, por força da qual se perdeu a chave da Unidade original.


As teses de Nicolas Berdiaeff poderão auxiliar-nos a perspetivar esta possibilidade de contextualização meta-histórica do mito imperial. Berdiaeff (cf. 1946, pp. 182-183) propõe a coexistência de três categorias de tempo, a saber: o tempo cósmico, o tempo histórico e o tempo existencial. Quer o tempo cósmico, quer o tempo histórico são perfeitamente mensuráveis; o primeiro num círculo de perpétuos retornos e o segundo em linha reta, progressiva e irrepetível, rumo ao futuro. Contrariamente, o tempo existencial é imensurável, dependendo essencialmente da intensidade das perceções internas, dos mais profundos sentimentos religiosos e dos estados ditos extáticos ou contemplativos. Não o simbolizam nem o círculo, nem a reta; antes um ponto, expressando um movimento para o interior, para a profundidade. Este sentido de verticalidade, que o isenta da horizontalidade do plano imediato, faz do tempo existencial um parente da eternidade, e parece ser nele que se insere o Império arquetípico, como meta utópica de uma demanda interior individual e coletiva. Esta é uma das ideias que nos pode remeter para a conceção de Quinto Império como reino imaterial de consciência; designadamente uma consciência de unidade, de interligação da realidade e de interdependência do todo, logo, promotora da fraternidade universal.


Ao tempo meta-histórico ou existencial do Império associa-se, naturalmente, um lugar hiperfísico. Julius Evola, por exemplo, alia o tema da Idade do Ouro à ideia de um reino metafísico, supra-histórico e intangível, escrínio da Tradição primordial cuja perda teria posto termo à Idade áurea do mundo. Estamos perante o mitologema do Centro Supremo, invisível, inacessível e inviolável, omphalos planetário que pode ser simbolizado por uma montanha íngreme, uma região subterrânea ou uma ilha firme e inexpugnável no meio das águas (cf. Evola, 1978, p. 36). É a Shamballah do budismo tibetano, o tabernáculo do Rei do Mundo, sobre quem René Guénon especulou, identificando-o com o próprio Melquisedec da tradição judaico-cristã (cf. Guénon, 1958, pp. 64-65), “rei de Salém” e “sacerdote do Deus altíssimo” (Génesis 14, 18). Neste conjunto de alusões simbólicas cabe ainda o Paraíso terrestre ou Arcádia, arquétipo político da Cidade Santa, equiparável à Terra de promissão da expetativa messiânica judaica, a que Gilbert Durand se refere como sendo precisamente um dos mitemas fundamentais do mito da Idade do Ouro (cf. Durand, 2008, p. 67).

Portanto, à ideia de um Quinto Império meta-histórico corresponde naturalmente a ideia de um Quinto Império hiperfísico. José Anes resgata-o do imaginário onírico e atribui-lhe consistência real, ainda que num plano da realidade onde o tempo e o espaço são outros. Para tanto, inspira-se nas teses de Henry Corbin e apelida-o de “Império Imaginal, isto é, mais real do que qualquer um dos outros” (Anes, 2008, p. 129). Corbin recorre ao neologismo imaginal para contornar a conotação vulgar do vocábulo imaginário – normalmente associado a tudo o que se concebe por irreal –, e assim fazer refletir fielmente o conceito de alam al-mithal preconizado pelos teósofos do Islão, uma espécie de plano intermédio entre o mundo empírico e o mundo do intelecto abstrato, com o seu próprio grau ontológico de existência, que, na antropovisão sufi, nada tem de irreal (cf. Corbin, 1972, p. 5). Esta questão é relevante do ponto de vista simbólico, já que a ideia de Império Imaginal nos remete não só para a ideia de uma realidade ontológica específica que merece a devida reflexão, como para a ideia de plano intermédio entre os mundos sensível e inteligível, ou, se se preferir, entre os planos da matéria e do espírito, os quais, na tradição hermética, servem de paradigma simbólico aos pares de opostos, como: lua e sol, noite e dia, feminino e masculino, etc. Partindo dessa perspetiva, o Império afigura-se andrógino, celebrando na sua essência imaginal o consórcio entre os referidos opostos, unificando-os. Fernando Pessoa, um dos arautos modernos do mito do Quinto Império, faz um apelo a que “criemos um Imperialismo andrógino, reunidor das qualidades masculinas e femininas: imperialismo que seja cheio de todas as subtilezas do domínio feminino e de todas as forças e estruturações do domínio masculino” (Pessoa, 1986, p. 76). Por sua vez, a Ilha camoniana cantada nos cantos IX e X d’Os Lusíadas é uma expressão andrógina do Centro Supremo, pois nela, o Gama e os seus ‘argonautas’ celebram o consórcio místico com a deusa Tethys e as suas ninfas, numa espécie de hierogamia ou hermafroditismo transcendente realizado pela dupla via iniciática, a um tempo húmida e seca, lunar e solar, do Amor e da Sabedoria.


Definida a dimensão espácio-temporal do Império, convém refletir em torno dos possíveis significados da sua componente ‘numerosófica’. Na linha de sucessão, o Império que ora nos prende a atenção é tradicionalmente o Quinto. Em Daniel (Cap. 2), os quatro reinos simbolizados pela estátua do sonho de Nabucodonosor estavam condenados a desaparecer sem deixar rasto para dar lugar a um reino eterno. A generalidade dos exegetas considera que os quatro reinos da profecia de Daniel aludem aos impérios assírio, persa, grego e romano. Camões é fiel a esta visão, referindo precisamente essa sequência no Canto I, 24 d’Os Lusíadas. Já o Padre António Vieira, que naturalmente afeto à exegese cristã identifica o Quinto Império com o Reino de Cristo, apresenta uma ordem de sucessão ligeiramente diferente, começando por egípcios e omitindo gregos, mas mantendo Roma como quarto império (cf. Vieira, 1718, pp. 26-30). Fernando Pessoa virá a alterar radicalmente a sequência tradicional, trazendo novos desafios ao debate especulativo em torno do tema. Para o vate, o império grego foi o primeiro, o império romano o segundo, o império cristão o terceiro, cabendo a quarta posição na ordem sequencial ao império britânico (cf. 1986, p. 123), ainda que em Mensagem se refira a ele como sendo a própria Europa (cf. 3ª parte, I, 2). Não obstante e em qualquer dos casos, quatro impérios seculares realizados darão lugar a um Quinto Império espiritual sonhado.


Em obediência ao objeto desta comunicação, importa refletir essencialmente sobre o simbolismo do número 5. José Anes (cf. 2008, p. 122 e p. 129), confessadamente inspirado na hermenêutica mítico-alquímica da história de Portugal ensaiada por Dalila Pereira da Costa, estabelece uma analogia simbólica muito sugestiva entre o Quinto Império e a quinta essência dos alquimistas, etérica, que escapa aos sentidos e que transcende o quaternário elemental da natureza: terra, água, ar e fogo, sobrepujados pelo éter, como quinto elemento. Naturalmente, a ideia de Império arquetípico, meta-histórico e hiperfísico confere com esta conotação alquímica da sua essência, não sendo difícil remeter a Pedra Filosofal para o plano imaginal em que mergulha o mito imperial. O Império sonhado, à semelhança da Lapis dos Filósofos, parece encerrar a chave hermética da natureza andrógina primordial. A sua consumação implica, assim, a revelação logoidal do enigma da Unidade.

António Quadros, partindo do elo tradicionalmente estabelecido com a Idade do Paráclito à luz do profetismo joaquimita, propõe uma correlação ontológica entre o Quinto Império e o Quinto Evangelho, o evangelho eterno da visão apocalíptica de João, sendo o quinto relativamente aos quatro evangelhos do Novo Testamento. O Quinto Evangelho é, nesta perspetiva, o livro da revelação paraclética por excelência, sob cuja égide despontará uma nova civilização, que já não se regerá nem pelo Antigo nem pelo Novo Testamentos, nem pela Idade do Pai nem pela do Filho, mas pelo evangelho eterno da Idade do Espírito Santo, cuja palavra de ordem evoca a ascese do espírito humano ao ideal de fraternidade universal (cf. Quadros, 2020, p. 215).

O tema do Paráclito remete-nos naturalmente para o mito do Santo Imperador do mundo, um dos mitemas essenciais do mito universal da Idade do Ouro, de acordo com a análise de Durand (cf. 2008, p. 67). Trata-se do rei escondido, geralmente numa ilha ou no escrínio subterrâneo de uma montanha, aguardando o momento propício para um regresso apoteótico ao mundo dos homens. Reconfigura-se o seu constructo nas mais diversas culturas, correspondendo ao rei Artur das lendas bretãs, ao Mahdi do messianismo ismaelita, ao Barba Ruiva da expectação imperial gibelina e ao Encoberto da tradição mítico-espiritual portuguesa. Em qualquer dos casos, o Rei, ou Imperador, oculta-se, esperando na antemanhã de uma nova Idade áurea do mundo, sobre o qual governará com plena justiça, equidade e sabedoria. Este mito parece ter-se incrustado de uma forma visceral, permanente e persistente no imaginário luso, ecoando num conjunto heterodoxo de fenómenos culturais e religiosos, de que se destacam a coroação do imperador nas festas populares do Espírito Santo e o messianismo sebástico.


O primeiro desses fenómenos, refletindo o vigor da expectação paraclética portuguesa, encerra uma carga simbólica digna de nota, principalmente quando o imperador coroado é uma criança. O segundo, espelhando a expectativa messiânica lusitana, mantém a mesma carga simbólica, já que D. Sebastião é o Rei-menino por natureza, coroado na infância e desaparecido na flor da juventude. Convém notar que a criança, como arquétipo, assume um duplo significado, aludindo simbolicamente ao estado pretérito de virginal inocência e imaculada pureza, e, simultaneamente, ao futuro em potencial. Na ordem escatológica do mito imperial, o carácter futuro da criança arquetípica pressupõe a aspiração ao resgate da androginia unitária original, para o qual concorrerá o reinado do Santo Imperador da expectação paraclética. As palavras de Carl Jung que passamos a transcrever poderão ajudar a clarificar semelhante ordem de ideias:


“Um aspeto fundamental do motivo da criança é o seu caráter de futuro. A criança é o futuro em potencial (…). Não admira, portanto, que tantas vezes os salvadores míticos são crianças divinas (…). No processo de individuação antecipa uma figura proveniente da síntese dos elementos conscientes e inconscientes da personalidade. É, portanto, um símbolo de unificação dos opostos, um mediador, ou um portador da salvação, um propiciador de completitude.” (Jung, 2019 p. 166)


Yvette Centeno lembra que “na tradição alquímica, a criança com a coroa na cabeça representa a pedra filosofal, a totalidade da união mística do espírito interior com o espírito universal, eterno” (Centeno, 1993, p. 266). Ora, na visão de Agostinho da Silva (cf. 2000, pp. 255-256), é na coroação da criança-Imperador em nós que reside a esperança de instauração do Reino ou Império do Espírito Santo. Toda esta carga simbólica remete-nos inevitavelmente para o mito da eterna criança, especialmente caro a Fernando Pessoa, para quem a incursão quimérica em Alcácer Quibir, onde o exército português liderado pelo Rei-menino D. Sebastião foi esmagado, expressa essencialmente um fim necessário, uma transmutação ou transferência do condicionalismo objetivo do lugar histórico para o lugar meta-histórico da consciência incondicionada. Na interpretação de Paulo Borges (cf. 2010, p. 154), o Rei-menino que Pessoa enaltece não é propriamente o cadáver jacente no areal de Alcácer Quibir, como ser que houve, mas antes o ser que é, permanente, oculto para o século, logo, móbil subliminar de uma nostalgia que se incrustou na psique do povo português e que permanece como um dos traços fundamentais da sua idiossincrasia.


A nostalgia do impossível


A nostalgia é apontada por Durand (cf. 2008, p. 67) como um dos mitemas do mito universal da Idade do Ouro e parece ser movida pela falta essencial de uma realeza passada que se perdeu com a queda adâmica. Essa realeza radica, assim, num tempo mítico que antecedeu o tempo histórico e que, na perspetiva de Eliade (cf. 1984, p. 11), move a aspiração de regresso periódico à Idade áurea e primordial do mundo. Designadamente no contexto escatológico da teoria progressiva das Idades de Joaquim de Flora, intrinsecamente correlativo do mito imperial em análise, esta nostalgia revela-se como uma espécie de ‘saudade do futuro’, a que Durand (cf. 2008, p. 26) chama “nostalgia do impossível”, a famosa saudade portuguesa, inserindo-a no campo mais particular de mitologemas que o imaginário português parece privilegiar e sustentar reiteradamente.


Para além da impossibilidade objetiva de projetar um sentimento como a saudade na inexistência do porvir, esta nostalgia a que se refere o citado antropólogo francês evoca uma vocação e uma aspiração ao Além-mar, ao “Além do Oceano”, requerendo uma travessia audaciosa, de tal modo arriscada, que se revela impossível. A meta da travessia reveste-se, assim, com as características próprias de um objeto utópico, irrealizável e inalcançável. Parece tratar-se de uma travessia ou demanda de elevado quilate iniciático, absolutamente impossível para corações despreparados e surdos relativamente aos apelos mais profundos da alma. No entanto pensa-se que a alma, nomeadamente a alma portuguesa – dada a sua idiossincrasia, admitindo a persistência de um sentimento sem tradução possível para outras línguas, a saudade –, aspira subliminarmente a realizar a dita travessia, numa espécie de atração mística pela vertigem marítima, mas sem a mesma vontade de outrora para assumir os riscos inerentes, assumindo uma postura de letargia que foi alvo das mais acirradas críticas de Fernando Pessoa no seu tempo. É ele mesmo quem diz: “Deus ao mar o perigo e o abismo deu, | Mas nele é que espelhou o céu” (Mensagem, 2ª parte, X).


A índole utópica do objeto de demanda radica no seu intrínseco carácter edénico. O paraíso terreal, perdido para o século, é o porto imaginal de uma viagem arquetípica que se realiza simbolicamente através das águas mistéricas, desconhecidas e imprevisíveis do oceano. Não admira, por isso, que apareça tantas vezes representado por uma ilha em cujo centro se eleva uma montanha com tanto de íngreme quanto de auspiciosa, sendo essas, aliás, as características da ínsula camoniana que já aqui mereceu a devida referência.


Essa ilha de nenhures, lugar hiperfísico onde o tempo é outro, situa-se tradicionalmente a Ocidente, o ‘Outro Mundo’ da mitologia celta, hemisfério do ocaso, onde o crepúsculo anuncia o mergulho do sol no horizonte vertiginoso do oceano, dando morte ao dia e ensejo à noite e aos seus mistérios. A morte simbólica do sol, ou, melhor dito, a sua ocultação cíclica, pressupõe a esperança no raiar de um novo dia, assinalado pelo regresso apoteótico do astro-rei. Na razão do que já foi dito a respeito, convém lembrar que a Avalon das sagas arturianas é o símbolo da esperança no regresso do Rei escondido, aguardando pelo momento escatológico propício ao regresso. O mitema do monarca oculto expressa uma falta essencial que virá a permear pujantemente o imaginário luso, alimentando o mito do Encoberto e servindo de mote à saudade, qual nostalgia desse impossível com que se reveste o messianismo sebástico, projetando a sua expectação não no D. Sebastião histórico derrotado no areal de Alcácer Quibir – desfecho do ciclo efémero de realização secular do império –, mas no Rei-menino oculto no nevoeiro da saudade, cujo desejado regresso reflete a expetativa de realização de um Império intimamente sonhado.

Este conjunto de ideias torna possível pensar que a vocação marítima portuguesa encerra uma aspiração inconsciente à vertigem do impossível, fatidicamente atestado pela irreversibilidade do passado e pela irremediabilidade da morte, factos da trágica transitoriedade do condicionalismo terreal de que a alma procura escapar através da travessia simbólica das águas. O mar é o caminho para o Além e a sua travessia parece ter por porto a utopia da imortalidade e do Amor em estado absoluto. Semelhante dedução remete-nos para aquilo a que podemos chamar disforia tristaniana, tendo por paradigma romanesco o amor impossível de Tristão e Iseu, que vemos retomado em Lancelot e Guinever, Romeu e Julieta, etc., e que parece refletir-se essencialmente na componente lendária da tragédia protagonizada por Pedro e Inês. No plano simbólico, essas personagens representam o par de opostos que se busca mútua e desesperadamente, mas cuja união se revela impossível no plano da diversidade, em que nada perdura e em que nada se mantém igual a si mesmo a cada segmento de um tempo que nunca se repete, pois nenhum momento repete o anterior nem será repetido pelo posterior. A rutura audaciosa dessa factualidade intransigente tem por resultado a morte, mas é nesta, quando vista à luz da tradição iniciática, que reside o limiar do Além-mar, a fronteira que, transposta, torna possível todas as coisas, inclusive o Amor em estado absoluto, utopia do androginismo ou consórcio perfeito entre o par de opostos, em que o princípio de dualidade patente no plano da realidade relativa dá lugar ao princípio de unidade intrínseco à realidade absoluta.

Quando este conjunto de aspetos simbólicos é transferido para o plano do imaginário marítimo português, a aventura dos Descobrimentos assume contornos de carácter iniciático. Ao indagar o enigma pessoano que dita que “falta cumprir-se Portugal”, Dalila Pereira da Costa (cf. 1978, pp. 17-18) transmite-nos a ideia de que a gesta marítima dos portugueses e subsequente consumação do império secular podem ser simbolicamente vistas como um batismo pela água. Com a queda do império em Alcácer Quibir, agudizou-se a saudade e o desejo de regresso à idade de ouro portuguesa, projetando-se esse conjunto de sentimentos na utopia de um porvir áureo que está por se cumprir, pois falta cumprir o batismo pelo fogo do Espírito Santo e a subsequente realização do Império paraclético sonhado, reflexo das mais utópicas aspirações à instauração da justiça, paz e fraternidade universais.


A vocação para a universalidade


Estas aspirações de cariz universalista e universalizante aparentam uma pertença filial a aspetos essenciais da idiossincrasia portuguesa. A aspiração à utopia paraclética do Império parece transcender a identidade nacional para se aventurar no plano da universalidade. É um facto que os profetismos, milenarismos e messianismos nacionais tendem a centralizar Portugal e o seu povo no plano providencial de uma espécie de teofania histórica. Todavia, e em última análise, o objeto escatológico das expetativas nacionais irrompe essencialmente de uma antropovisão cristã de incontornável carácter universal, que transcende largamente os conceitos geopolíticos clássicos e que parece idealizar a substituição de fronteiras por pontes. Partindo desta ordem de ideias, a vocação marítima dos portugueses poderá encerrar uma profunda vocação para a universalidade. É preciso notar que os Descobrimentos podem ser vistos, de certo modo, como um fenómeno de descentramento nacional, de abertura ao mundo, sendo tradicionalmente advogado o estabelecimento de intercâmbios culturais e laços consanguíneos entre os portugueses e os autóctones de uma diversidade assinalável de destinos ultramarinos.

No plano ontológico, a essência imaginal e a pertença meta-histórica do Império-arquétipo forçam congenitamente um enquadramento de cariz transnacional. Talvez por isso, e apesar da manifesta ambiguidade de disposições ideológicas, os arautos do Quinto Império, nomeadamente António Vieira, Fernando Pessoa e Agostinho da Silva, revelam-se visionários de um Portugal – na sua dupla vertente mítica e histórica – intrinsecamente vocacionado para a universalidade (cf. Borges, 2010, p. 9).

Para António Vieira (cf. 1718, pp. 32-33) o Quinto Império será um império cristão no seu sentido puramente universal, em torno de cujo supremo diadema todas as coroas se unirão. Subentende-se nessa visão a presença de um Santo Imperador do mundo – o próprio Cristo reinando sobre a Terra – cujo cetro comandará as nações unificadas sob uma mesma bandeira, instaurando um tempo de justiça, paz e fraternidade entre todos os povos.


Em Pessoa, como já vimos, o império cristão é relegado para a terceira posição na cadência quaternária do mito, portanto, ainda longe do Quinto, apesar dos supostos contributos para aquela que será a apoteose final deste, tal como todos os outros, pois o Império, à luz do profetismo pessoano, é tido por síntese total – e não apenas uma extensão – das valias culturais, políticas e morais desenvolvidas nos quatro anteriores, fundindo-as “com tudo quanto esteja fora deles, formando pois o primeiro império verdadeiramente mundial, ou universal” (Pessoa, 1986, p. 123). Será, no dizer do vate, um império sincrético, capaz de resumir várias coisas e de concentrar várias influências; em suma, um império andrógino, em que os opostos complementares se reunificarão finalmente, deixando de se buscar avidamente.

Portugal, ou melhor, a cultura portuguesa – nomeadamente a língua e o seu inato potencial poético-literário – tem, na ideação imperial de Pessoa, uma palavra a dizer no plano da mediação rumo ao futuro Império do Espírito e à fraternidade universal preconizada pela teosofia e especialmente cara ao rosacrucianismo (cf. Pessoa, 1986, pp. 171-182).

Agostinho da Silva, por sua vez, virá a aprofundar o elo tradicionalmente estabelecido entre o Quinto Império e a expectativa paraclética de matriz joaquimita, enfatizando-lhe a expressão universal. A “religião do Espírito Santo”, tida pelo filósofo e ensaísta como genuína essência da religiosidade portuguesa, parece encerrar a aspiração a um ecumenismo de ordenação supraconfessional, abrangendo judeus, cristãos e muçulmanos (cf. Silva, 2000, pp. 254-255). Semelhante disposição remete-nos inevitavelmente para o paradoxo dos templários, ordem monástico-cavaleiresca de obediência católica que virá a ser acusada de heresia, por alegados laços de afinidade com o Islão e o seu Profeta, entre outras coisas. Para António Quadros, por exemplo, os templários desempenharam um papel importante na arquitetura daquilo a que chama projeto áureo português, tendo por objeto a instauração do Império do Espírito Santo. Agostinho da Silva não se coíbe de abordar o paradoxo dos templários de uma forma peculiar, conferindo-lhes o estatuto de “homens conscientes de seu destino universal e transcendente”, cujo sublime objetivo seria provavelmente o de “fazer do mundo um todo” (Silva, 2000, p. 324). A palavra amor, esse Amor utópico da apologia camoniana que parece mover a saudade, será, em Agostinho da Silva, tal como a supramencionada coroação da criança-Imperador em nós, uma das chaves para a realização do Império, e talvez não fosse possível terminar esta nossa intervenção com palavras mais sublimes e dignas de reflexão que aquelas da lavra do pensador ora citado que passamos a transcrever:

“O próprio Cristo anunciara, pelo Evangelho do discípulo amado, que seu tempo era limitado e que era preciso que ele se fosse para que viesse aos homens o verdadeiro Consolador, para que o Espírito baixasse e se estabelecesse e com ele viesse o Império da Fraternidade, e uma rede de Amor envolvesse ao mundo inteiro e o fogo criador, supremamente livre, viesse determinar, à escala de todo o homem, a mesma explosão inventiva ou reveladora que dera origem ao universo.” (Silva, 2000, pp. 322-323)


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